Invasão transforma serra em área de risco | RECANTA

Invasão transforma serra em área de risco

Sérgio Duran   Folha de S.Paulo – São Paulo (SP)   dezembro 2000

A serra da Cantareira (zona norte da cidade de São Paulo) foi invadida por 143 loteamentos clandestinos desde 1990. Essas invasões, que ocupam uma área equivalente a seis vezes o tamanho do parque Ibirapuera – que tem 1,5 km² – , elevam o risco de deslizamentos no local e são responsáveis pelo agravamento das enchentes no município.

Essas são as conclusões de um estudo que a Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente deverá publicar ainda neste mês no site da instituição (www.prodam.sp.gov.br/svma).

Intitulada “Efeitos Ambientais da Ocupação Irregular na Região da Serra da Cantareira no Município de São Paulo”, a pesquisa monitorou o comportamento dos loteamentos clandestinos que surgiram a partir de invasões de terras em área rural, de 1990 a 99.

O estudo não inclui as invasões anteriores a esse período. Isso porque, segundo a engenheira Sylvia Damião, 35, responsável pela pesquisa ao lado dos geólogos Francisco Adrião Neves da Silva e Oswaldo Landgraf Jr., o pico de ocupação da Cantareira se deu na década de 90.

“Alguns loteamentos chegaram a encostar no Parque Estadual da Cantareira, área de preservação ambiental, mas não gostamos de dizer onde ficam os limites do parque porque é melhor que os invasores não saibam”, afirma.

Terra e água

O agravamento das enchentes na cidade, de acordo com o estudo, se dá por meio de uma somatória de condições típicas da Cantareira. As principais são o tipo de solo da região, a sua inclinação e o fato de o território ser cortado por dezenas de córregos que deságuam no rio Tietê.

A área onde ocorre a degradação tem solo com predominância do granito, xisto e filito. De acordo com o IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo), é o tipo mais sujeito à erosão.

A movimentação de terras para abrigar moradias clandestinas e sem infra-estrutura favoreceu a dispersão do solo pelos rios e córregos da região, que deságuam no rio Tietê. Isso provocou o assoreamento (redução) da calha dos córregos e do rio e a perda da capacidade de escoamento das águas. A Cantareira concentra duas das mais importantes e problemáticas bacias hidrográficas da Grande São Paulo – as do Cabuçu de Baixo e do Cabuçu de Cima.

O estudo da SVMA cita uma pesquisa feita pelo IPT, segundo o qual o DAEE (Departamento de Águas e Energia Elétrica) retira cerca de 2 milhões de m³ de resíduos das calhas do rio Tietê e Pinheiros – 95% são terra e o restante, lixo urbano. “Isso sem contar a impermeabilização do solo que esses loteamentos provocam. Comum em toda a cidade, esse efeito é particularmente grave na zona norte, pois a ocupação das áreas de morros aumenta muito a velocidade com que as águas chegam aos pontos mais baixos”, diz o estudo.

A pesquisa afirma ainda que, enquanto a ocupação desordenada da Cantareira não for contida, a despoluição do rio Tietê “nunca será completada”.

Clandestinos, os loteamentos não têm esgoto, lançando-o em estado natural nos córregos que abastecem o Tietê. A inclinação da região faz com que esses resíduos cheguem velozmente ao rio, “deixando a água sempre com sólidos em suspensão e esgotos”.

População

A pesquisa da SVMA não contabilizou a população que habita os loteamentos. Um deles, o Jardim Paraná, visitado pela Folha, considerado de porte médio, tem cerca de 10 mil habitantes, segundo a Sociedade Amigos do Jardim Paraná, que tenta regularizar a situação dos invasores.

Levantamento da Secretaria da Habitação, feito em 96, indica uma população de 2,5 milhões de pessoas em loteamentos clandestinos em toda a cidade.

“Houve conivência do poder público, mas o caso da região da Cantareira reflete uma realidade social, de falta de políticas habitacionais eficazes para a população de baixa renda”, afirma Sylvia.

O deslocamento dessa população rumo ao norte foi responsável pelo desmatamento de 2,9 milhões de m2 de vegetação significativa (mata fechada) da região.

Invasores dinamitam rochas por R$ 30

Para poder construir barracos em uma região onde predominam matacões – pedras gigantes – , os invasores do Jardim Paraná, loteamento clandestino na serra da Cantareira, pagam R$ 30 a pedreiros que explodem as rochas com dinamite. Muitas, porém, continuam intactas e ameaçam rolar se houver deslizamento de terra.

Sem água, esgoto e coleta de lixo, as cerca de 10 mil pessoas que moram no loteamento já se acostumaram à vida selvagem das áreas ao redor, tomadas por florestas. “O pessoal costuma comer carne de macaco e de calango”, conta Marlúcia Ferreira Souza, 28, primeira-secretária da Sociedade Amigos do Jardim Paraná.

A sociedade tenta legalizar a situação do loteamento, cujas invasões começaram em 1994. Naquele ano, morreu o piloto Ayrton Senna. Por isso, conta Marlúcia, a avenida principal do bairro foi batizada com o nome dele.

O nome das ruas é dado pelos moradores. Como a maioria é evangélica, proliferam nomes bíblicos como Caminho de Emaús. O córrego de esgoto na parte baixa do loteamento foi denominado “rio Jordão”, local de batismo de Jesus Cristo, segundo a Bíblia.

A falta de água provoca um dos problemas ambientais mais graves gerados pelos moradores do Jardim Paraná – a extinção de nascentes naturais de água da serra da Cantareira.

Segundo o pedreiro Anacleto Aparecido Alves, 31, grupos de dez moradores dividem o custo de mangueiras que vão buscar água serra adentro. Toda vez que a nascente seca, as mangueiras mudam de lugar. Hoje, a maioria se encontra a 3 km do loteamento.

As ruas do Jardim Paraná são repletas dessas mangueiras pretas de borracha, que, furadas, molham constantemente o local, aumentando a erosão. Elas descem da serra como encanamentos, abastecendo as casas.

“Às vezes, a gente perde o dia só para consertar uma mangueira que saiu do lugar. Para chegar até a nascente, são duas, três horas de caminhada”, diz Anacleto. Técnicos da Sabesp analisaram a água consumida pelos moradores e constataram que é imprópria para o consumo.

A direção da sociedade dos invasores ainda não se abalou com o fato. Até agora, segundo eles, o saldo de problemas foi baixo – há dois anos, um surto de hepatite matou uma criança.

“Antes, a diversão daqui era tomar banho de cachoeira. Com as mangueiras, as que existiam secaram”, diz Marlúcia.

Deslizamentos são comuns no Jardim Paraná. “Toda chuva que cai, desaba o barraco de alguém. Por isso existe a sociedade, para dar abrigo”, diz Juscelino Pereira dos Santos, 46, segundo-secretário da entidade.

Segundo ele, nem todas as rochas podem ser dinamitadas. A que fica próxima ao “escadão da Felicidade”, de cerca de 15 metros, é uma das preservadas pelos moradores. “Aquela é muito grande. Se rolar vai matar gente demais”, afirma Juscelino.

Marlúcia diz que a situação foge ao controle. “Tem gente que vive de dinamitar as pedras. Volta e meia tem um explodindo matacão por aqui.”

Regularização

Marlúcia e Juscelino contam que a maioria dos moradores veio do distrito de Brasilândia (zona norte), despejados ou “cansados de pagar aluguel”. A sociedade foi formada pelos primeiros invasores do Jardim Paraná.

Há um ano, eles se uniram e fizeram uma proposta de compra do terreno, de 193,5 mil m², ao proprietário. Ele aceitou.

O negócio foi fechado com R$ 50 mil de entrada e 120 prestações de R$ 16,5 mil, totalizando R$ 2 milhões. Com a contribuição dos moradores – cada um paga R$ 50 por mês -, a sociedade já pagou nove prestações em dia.

Mas, para regularizar o “bairro”, seria preciso ainda um estudo topográfico, que, provavelmente, condenaria a ocupação do local por sua constituição geológica.

“Nós planejamos fazer um muro de arrimo nas encostas. Além disso, há muito espaço nesse terreno que não foi ocupado. Ou seja, daria para transferir os moradores desses locais”, afirma Marlúcia. O espaço a que se refere é a mata fechada que contorna o Jardim Paraná.

O plano, contam os dirigentes da sociedade, pode ir por água abaixo diante da inadimplência dos associados. “Somente 30% pagam a prestação em dia”, diz Marlúcia.

Clandestinos chegam às escarpas

A ocupação da região da serra da Cantareira, segundo o estudo de três técnicos da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente, é uma espécie de bomba-relógio que, a curto prazo, poderá detonar uma série de tragédias. Depois de invadir o pé da serra, os clandestinos começam a subi-la.

A pesquisa aponta que 16% dos 143 loteamentos clandestinos ocupam áreas com 60% de inclinação – ou, de acordo com a carta geológica do IPT, locais de tipo 8 (topografia de escarpas), nível mais alto da classificação, que começa com a colina.

O levantamento também indica que 60% dos loteamentos estão em áreas com inclinação de 25%, patamar em que começam os riscos de deslizamento.

Para Sylvia Damião, uma das responsáveis pelo estudo, os números da Defesa Civil do Município referentes às áreas de risco da região são subestimados. “Seria preciso analisar cada um dos loteamentos para determinar com precisão”, disse.

Além do risco de deslizamento, 50% dos loteamentos clandestinos da Cantareira estão em solo granítico com incidência de matacão (pedra gigante). “Os invasores movimentam a terra para construir suas casas sem ter conhecimentos geológicos. Com isso, podem retirar o calço dessas pedras, provocando acidentes.”

Em fevereiro do ano passado, um deslizamento na região do Jaçanã, área dominada por cerca de 60 loteamentos, matou duas pessoas e feriu 14. Em março, outro deslizamento matou uma pessoa.

“Bota-fora”

Além do risco de deslizamento e do agravamento das enchentes, o estudo dos técnicos da SVMA enumera outros efeitos maléficos da ocupação da Cantareira.

A maioria dos loteamentos não tem saneamento básico nem coleta de lixo. A prática adotada pela população é construir fossas subterrâneas e instituir lixões irregulares, do tipo “bota-fora”, escondidos na serra. O estudo enumerou nove lixões na região. As fossas contaminam nascentes de água; os lixões clandestinos fazem proliferar doenças como hepatite, comum na zona norte.

O desmatamento é apontado como outra consequência grave da ocupação da Cantareira. Em média, cada loteamento desmata 30% de vegetação significativa (em estado avançado de recomposição) da região. Somada, a área de mata fechada perdida chega a 2,9 milhões de m².

A cidade de São Paulo possui 1,5 mil km², dos quais 10,2% são ocupados por áreas verdes. A perda dessas áreas está diretamente ligada às variações climáticas na capital. Segundo o Diagnóstico Ambiental do Município de São Paulo, feito em 92, a cidade chega a ter diferenças de 10°C de uma região para outra. As áreas mais quentes são as que têm menor quantidade de vegetação.

Rico também devasta serra, diz especialista

A “licenciosidade” do poder público frente à ocupação da região da Cantareira não se estende somente aos loteamentos de baixa renda, na avaliação do advogado Bonfilio Alves Ferreira, mas também aos de alto padrão. “A situação é trágica”, afirma.

Bonfilio é diretor do Instituto Paulista de Ecologia Humana, ONG que ocupa a vice-presidência do comitê da sub-bacia Juqueri-Cantareira – um dos cinco conjuntos de córregos e rios da região metropolitana. O comitê, responsável pela gerência da sub-bacia, é composto ONGs e por representantes das administrações municipais da região e estadual.

“Você tem basicamente dois movimentos na ocupação da Cantareira, um da população de baixa renda e outro dos ricos, que devastam com construções irregulares, que incluem campos de futebol e piscinas, cimentando todo o terreno”, diz Bonfilio, que é também diretor de Meio Ambiente do Conselho Comunitário de Saúde de Franco da Rocha.

A pesquisa da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente diz que a maioria dos loteamentos é de baixa renda. A região permite construções que vão de 10% a 15% dos lotes, cujo tamanho varia de 5 mil m2 a 15 mil m².

“A região da Cantareira inteira (que inclui outros municípios, como Caieiras, Mairiporã e Franco da Rocha) tem um fiscal para cada 100 km²”, afirma Bonfilio. Segundo ele, Franco da Rocha, que fica no meio da sub-bacia Juqueri-Cantareira, nunca teve um projeto habitacional. O município é um dos que mais crescem em população na Grande São Paulo, numa proporção de 4,76% ao ano. Na capital, a região de maior crescimento atinge 1,4% ao ano, segundo a CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo).

Em um ponto os técnicos da secretaria e o advogado concordam – a facilidade de acesso à zona norte favorece a sua ocupação. Tanto que a maioria dos loteamentos se concentra em regiões cortadas por rodovias.

“Em comparação com a zona sul, a região norte é próxima, além de ser servida pelo metrô e pelas linhas ferroviárias”, afirma Sylvia Damião, da secretaria.

Bonfilio cita como agravante a duplicação da Fernão Dias e o rodoanel, cujo primeiro trecho a ser entregue será na região.

A sub-bacia Juqueri-Cantareira congrega os principais patrimônios ambientais da região metropolitana. São quatro parques estaduais: Cantareira, Anhanguera, Juqueri e Pico do Jaraguá.